- Deixa de ser bunda-mole!
- Não precisa ofender.
- Me desculpe, cara... mas eu acho que você precisa dum choque, pra ver se acorda!
- Eu sei.
- Sabe? Sabe nada!
Secou a testa com um guardanapo de papel; estava vermelho, sentia o suor escorrer pelas costas. O amigo ficou calado, cabisbaixo, encarando um maço de cigarros sobre a mesa. Como isso foi acontecer com o Jeremias? Quando estudavam juntos no interior, era um jovem com muito potencial. Praticava esportes, era mais alegre...
- Olhe, eu não quero te dizer o que fazer.
Jeremias pegou um cigarro do maço e o isqueiro que estava no bolso. Disse:
- Não esquenta.
Cigarro aceso, deu uma longa tragada e soltou a fumaça lentamente. Ficaram encarando-se em meio à fumaça. Na mesa, as marcas dos copos formavam uma figura que parecia com o símbolo das olimpíadas.
- Jê, e o futebol, hein? - perguntou com um imenso sorriso nos lábios.
Continuou: - Você costumava ser um gremista fanático! Lembra que viemos assistir Grêmio X Corínthians, lá pelo início dos anos 2000?
- Lembro, sim.
- O Grêmio perdeu, mas nos divertimos muito – manteve os olhos vidrados como se tivesse uma epifania.
– Você deveria voltar à praticar esportes, cara! Tem todo aquele lance de endorfina... pegar um sol... essas coisas!
- Agradeço a dica.
-Ah! Me esqueci... Você só fuma! Só fuma e reclama... não faz nada além disso: FUMA & RECLAMA! – escreveu com o dedo indicador sobre as rodelas de água deixadas pelos copos, enquanto esbravejava cada sílaba. Estava vermelho novamente, e suava nas axilas. Jeremias sorriu dessa vez.
– Tá rindo do quê? Eu continuo afirmando que você deve praticar algum esporte, se envolver com as pessoas, dar umas risadas ao sol.
- Dar umas risadas ao sol – repetiu Jeremias. – É bonito isso.
- Ué, pensa que só você pode ser poeta? Acha que não pode surgir um caminhoneiro poeta?
- Não, eu não penso assim.
- “A saudade é a memória do coração.”, li isso na estrada. O que acha?
- Bonito – disse por educação e porque sentia-se melhor.
- E essa? “Eu não sei cozinhar, mas na estrada vou ver seu cuzinho.”
Caíram na gargalhada e beberam até esvaziarem os copos.
- Jê, eu sei que você não é mais aquele Jeremias dos velhos tempos. Eu também não sou o mesmo. Não gosto das mesmas coisas que gostava há anos atrás – fez cara que insinuava o trocadilho com ânus. – Sacou?
Falou enquanto lotava os copos com o líquido dourado.
- Saquei.
- Mas esse lance de trabalhar com as letras te mudou mais do que a estrada me mudou. Eu, agora tenho o meu filho, que mora com a mãe dele, em Guaíba. Meu pai morreu, e minha mãe foi morar com o meu irmão em Santa Catarina. O cenário e os personagens mudaram, mas eu continuo o mesmo. Já, você...
- Desembucha.
- Você continua no mesmo lugar desde que chegou aqui. Vem tomar cerveja sempre nesse mesmo boteco chinelão da Rua da Praia. Ainda é um cara boa pinta, apesar dessa brancura de doente. Mas dentro dessa caixa de merda que você costuma chamar de cabeça, as coisas mudaram assustadoramente, Jê.
-Pode ser.
- Como você fala pouco, porra!
Jeremias acendeu o último cigarro do maço. O amigo mandou o garçom trazer um maço de Marlboro vermelho.
-Deixa que eu pago as cervejas e o crivo. Afinal, eu sou o cara do dinheiro dessa dupla.
O garçom entregou os cigarros e levou a garrafa vazia para dentro do bar. Jeremias agradeceu a gentileza. O amigo espreguiçou-se na cadeira de plástico, esticando os grandes braços para o céu.
- Jê, eu vou nessa.
- É cedo.
- Mas tenho que ir. Vou pro nordeste amanhã cedo; tenho coisas pra arrumar.
- Bom, agradeço pelo papo.
- Foi muito bom, mesmo – levantou, e aí Jeremias lembrou o quanto era grande o seu amigo.
– Antes de ir, quero que você prometa que vai praticar algum esporte – e fez um gesto exagerado de interrogação, esperando uma resposta.
- Vou pensar, eu prometo.
-Bunda-mole! Você é um baita dum BUNDA-MOLE!
Virou as costas e foi pisando firme pela Rua da Praia. Jeremias ficou sentado terminando o crivo, enquanto o amigo sumia na multidão.
Nunca mais o viu.
Jeremias soube pelos jornais: "Comunicamos o falecimento do caminhoneiro Altamir Nunes, gaúcho, 37 anos. O velório será no dia...". Dizia que sofreu um infarto fulminante enquanto jogava futebol com alguns amigos numa praia de Salvador, Bahia.
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Rua 25 de Novembro
A água batia forte. Pingos grossos e pesados explodiam com violência, abalando a frágil estrutura do guarda-chuva. Não havia andado cinquenta metros e já estava todo ensopado. A situação era essa: chuva, vento, e um cidadão morrendo de frio subindo uma lomba na cidade X.
Até aquele momento, não havia dado conta que sempre morei em lombas. Em todos os meus endereços anteriores haviam ladeiras. Seguia morro acima contra a chuva, quando tive um insight: Moradores de ruas íngremes são, potencialmente, pessoas perigosas. Especialmente se residem por muitos anos no local. Elas têm uma resistência adquirida pela vivência no terreno hostil. De uma lomba, tanto pode sair um líder político, como um psicopata. Obstinados!
Nunca fui líder político, tampouco psicopata. Mas, com certeza, fui um cara que subia uma rua durante uma tempestade, desprotegido por um produto chinês que era qualquer coisa, menos um guarda-chuva.
No entanto, a lomba sempre esteve ali, com o seu nome de data desconhecida: 25 de Novembro. Nos dias de sol intenso a cidade X era o inferno; a lomba, o meu castigo. Quando chovia, era especialmente perigoso caminhar até a Av. Brasil, lá no alto da rua.
Logo alcancei a terceira quadra, passando pelas ruas que cortam a 25 de Novembro - Gen. Osório e Independência. A primeira, em dias de pouca visibilidade, era um convite à morte para o transeunte. Havia “pilotos” por toda cidade. Era o que se via aos domingos, ao redor das praças, na avenida principal. Os caras reclinavam os bancos do carro, punham um som da pesada, davam voltas, voltas, e mais voltas pela avenida... e bebiam. Uns brigavam, outros corriam de carro. Eu não tinha carro, emprego, não gostava de discussão, eu não tinha namorada.
A chuva ficou mais pesada quando eu alcancei a Morais Moreira, última rua antes da Av. Brasil. Meus papéis estavam muito bem protegidos por um saco plástico. Não podia adiar esse compromisso com a contadora. Precisava dar baixa na empresa que abri com meu pai há alguns anos.
Nunca emitimos nota. Pagávamos uma anuidade ao escritório e a contadora fazia a nossa declaração do imposto de renda; era isso. Meu pai me culpava por induzi-lo à abrir essa empresa. Ela não tinha movimento, e no final do ano ele tinha que desembolsar uma grana. Ficava puto. Sempre fui tranquilo enquanto a isso. O que me incomodava, realmente, era essa situação molhada e fria; era dar um fim à essa empresa fictícia; era arrumar um novo lar pro meu cão; era mudar de casa mais uma vez.
Na parada da Av. Brasil havia um ônibus recém chegado. Já faz um tempo, mas acho que gastei uns dois pila$ na passagem até o centro.
Até aquele momento, não havia dado conta que sempre morei em lombas. Em todos os meus endereços anteriores haviam ladeiras. Seguia morro acima contra a chuva, quando tive um insight: Moradores de ruas íngremes são, potencialmente, pessoas perigosas. Especialmente se residem por muitos anos no local. Elas têm uma resistência adquirida pela vivência no terreno hostil. De uma lomba, tanto pode sair um líder político, como um psicopata. Obstinados!
Nunca fui líder político, tampouco psicopata. Mas, com certeza, fui um cara que subia uma rua durante uma tempestade, desprotegido por um produto chinês que era qualquer coisa, menos um guarda-chuva.
No entanto, a lomba sempre esteve ali, com o seu nome de data desconhecida: 25 de Novembro. Nos dias de sol intenso a cidade X era o inferno; a lomba, o meu castigo. Quando chovia, era especialmente perigoso caminhar até a Av. Brasil, lá no alto da rua.
Logo alcancei a terceira quadra, passando pelas ruas que cortam a 25 de Novembro - Gen. Osório e Independência. A primeira, em dias de pouca visibilidade, era um convite à morte para o transeunte. Havia “pilotos” por toda cidade. Era o que se via aos domingos, ao redor das praças, na avenida principal. Os caras reclinavam os bancos do carro, punham um som da pesada, davam voltas, voltas, e mais voltas pela avenida... e bebiam. Uns brigavam, outros corriam de carro. Eu não tinha carro, emprego, não gostava de discussão, eu não tinha namorada.
A chuva ficou mais pesada quando eu alcancei a Morais Moreira, última rua antes da Av. Brasil. Meus papéis estavam muito bem protegidos por um saco plástico. Não podia adiar esse compromisso com a contadora. Precisava dar baixa na empresa que abri com meu pai há alguns anos.
Nunca emitimos nota. Pagávamos uma anuidade ao escritório e a contadora fazia a nossa declaração do imposto de renda; era isso. Meu pai me culpava por induzi-lo à abrir essa empresa. Ela não tinha movimento, e no final do ano ele tinha que desembolsar uma grana. Ficava puto. Sempre fui tranquilo enquanto a isso. O que me incomodava, realmente, era essa situação molhada e fria; era dar um fim à essa empresa fictícia; era arrumar um novo lar pro meu cão; era mudar de casa mais uma vez.
Na parada da Av. Brasil havia um ônibus recém chegado. Já faz um tempo, mas acho que gastei uns dois pila$ na passagem até o centro.
domingo, 12 de setembro de 2010
Todo o amor numa fotografia fica ali, parado.
Tuas fotografias
fizeram o tempo
parar.
Teu incessante clicar colhe fisionomias.
Dos rostos familiares,
nos traços irregulares das suas paralisias,
eterniza as alegrias.
Dos contorcidos sorrisos de olhos semicerrados,
Até os beijos esquecidos de um presente passado,
hoje, olha os retratos.
Todo o amor numa fotografia fica ali,
parado.
fizeram o tempo
parar.
Teu incessante clicar colhe fisionomias.
Dos rostos familiares,
nos traços irregulares das suas paralisias,
eterniza as alegrias.
Dos contorcidos sorrisos de olhos semicerrados,
Até os beijos esquecidos de um presente passado,
hoje, olha os retratos.
Todo o amor numa fotografia fica ali,
parado.
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